P., sabes bem que o que vou aqui deixar do Enrique Vila-Matas não é por ele ter sido galardoado, recentemente, com o prémio da Real Academia Espanhola 2006 pelo romance “Doutor Pasavento”. O livro vai ser lançado ainda este mês, pela Teorema.
O excerto que fica veio daqui, da própria revista em papel mas cortei algumas (poucas) partes.
Passeávamos pela chamada alameda do fim do mundo, um melancólico trilho junto do castelo de Montaigne, quando me perguntaram:
- Donde vem essa tua paixão por desapareceres?
O meu acompanhante desejava saber donde vinha essa ideia de desaparecer que eu tanto anunciava em textos e entrevistas, mas que acabava por nunca pôr em prática.
(…)
- Francamente não sei – acabei por responder um pouco depois - , ignoro donde vem, mas suspeito que, paradoxalmente, toda essa paixão por desaparecer, todas essas tentativas, chamemos-lhe suicidas, são ao mesmo tempo tentativas de afirmação do meu eu.
Soaram muito pertinentes estas palavras ensaísticas, ditas ali, nem mais nem menos que no próprio berço do género literário do ensaio. Como se sabe, Michel de Montaigne escreveu os seus livros no cimo de uma torre anexa ao seu castelo próximo de Bordéus. Escreveu-os num estúdio e biblioteca que ficavam no terceiro andar da torre. Ali inventou o ensaio, esse género literário que, com o tempo, acabaria por se ligar à construção da subjectividade moderna, construção em que participaria o próprio Descartes, que também decidiu encerrar-se a pensar num lugar solitário, no seu caso, no bem aquecido quarto de um quartel de Inverno de Ulm. De maneira que pode dizer-se que o sujeito moderno não surgiu do contacto com o mundo, mas sim em quartos isolados onde os pensadores se encontravam sozinhos com as suas certezas e incertezas, sozinhos consigo mesmos.
Enquanto subia pela estreita e inclinada escada de caracol que conduzia ao estúdio e biblioteca de Montaigne, e às voltas com a resposta que tinha dado pouco antes ao meu acompanhante, pensei no mistério do desaparecimento dos homens. (…)
Olhei para o meu acompanhante e a imaginação fez-me vê-lo diferente de como o tinha visto até então. Quando olhei para ele com mais atenção, vi, ou julguei ver, que era Deus.
- Donde vem essa tua paixão por desapareceres? – voltou a perguntar-me.
Fortis imginatio generat casum, quer dizer, uma forte imaginação gerou o acontecimento, como diziam os clérigos no temo de Montaigne. O mesmo se pode dizer da minha visão de deus naquele preciso instante. Lá em cima no alto da torre, julguei descobrir que Deus repetia pelo menos duas vezes as perguntas. No mínimo, parecia-me um pouco tosco. Tinha esse Deus inteligência suficiente para, por exemplo, escrever ensaios? Olhei-o para voltar a responder-lhe e então vi que tinha deixado de ser Deus para voltar a ser a pessoa que me acompanhava. (…)
O meu acompanhante não era tão estúpido para insistir em perguntas já respondidas. Olhei para as traves do tecto, onde Montaigne tinha gravado pensamentos gregos e latinos que ainda hoje se conservam perfeitamente.
- Donde vem essa tua paixão por desapareceres? – ouvi voltarem a dizer-me.
O meu acompanhante não tinha dito aquilo. Estava de pé junto de uma das janelas, como se quisesse ver exactamente o mesmo que Montaigne via no seu tempo por aquela abertura. Estava imóvel. Não, não podia ter sido ele. Além disso, estava completamente ausente. Então, quem é que tinha dito aquilo? Era um eco? Era uma voz que procedia do interior de mim mesmo? Era o fantasma do berço do ensaio?
(…)
Umas semanas depois, sonhei que alguém a quem chamavam dottore Pasavento tinha desaparecido, no cimo da torre de Montaigne, perto de Bordéus, sem deixar rasto, nem uma única marca. O dottore era muito parecido com o escritor basco Bernardo Atxaga, um bom amigo desde há muitos anos. Pensei na quantidade de escritores que apareciam na minha vida, nos meus sonhos, nos meus textos. Embora a grande maioria deles costume ser gente vaidosa e mesquinha, há uma estranha secção minoritária de escritores que têm anjo e que são capazes de nos conduzir com assombrosa facilidade a outra realidade, a um mundo com uma linguagem distinta.
Quem disse que a palavra escritor cheirava a cachimbadas? Não, senhor. Quase todas as escritoras e escritores da secção com anjo são seres adoráveis que fumam e pensam frente a Olympias portáteis muito antigas, seres atormentados que parecem estar a viver num lugar à parte.
Costumam estar angustiados e serem muito inteligentes e, por não o estarem ou por não o serem, esfalfam-se por parecê-lo. Recordo muito especialmente um escritor da secção angélica que, num filme que se intitulava Num lugar à parte, vivia num hotel com uma grande janela que dava para um abismo e um mar numa cidade sem nome. E também me recordo que desde sempre desejei um dia ser como o protagonista daquele filme e viver num lugar que tivesse o mesmo duende daquele hotel que dava para o abismo. Quem disse que todos os grandes escritores decepcionavam quando se conheciam de perto? Não, senhor. Os da estranha secção angélica são encantadores e vivem em lugares sempre muito abismais.
De repente, imaginei que entrava num comboio na estação de Atocha de Madrid porque tinha combinado encontrar-me essa tarde com Bernardo Atxaga em Sevilha. No quiosque da estação comprava dois romances que estavam muito na berra. Um deles tinha esta epígrafe: «no final tudo perde o sentido, mas a máquina de escrever continua comigo.» Os dois romances eram espanhóis e dizia-se que eles estavam a mudar a história da literatura. Pareceu-me inclusive aterradora a possibilidade de que a Espanha pudesse voltar a intervir no curso da história. (…)
Acima de tudo e depois do longo tempo que tinha passado sem nos vermos, sentia uma grande vontade de o abraçar, de contar-lhe histórias dos últimos quatro anos, repetir e talvez melhorar gestos e risos de outros encontros anteriores.
Subi para o comboio com aqueles dois livros e interroguei-me se me ficaria bem confirmar que, com efeito, não se enganavam os que diziam que os dois romances acabavam de revolucionar a história da literatura. Um chamava-se Fantasia poética, e o outro, Um carro fúnebre errava por Paris. O título do primeiro, embora de gosto duvidoso, fez-me pensar imediatamente no escritor Robert Walser, que uma vez qualificou como «fantasia poética» o seu romance Jakob von Gunten, um dos meus livros preferidos. Eu pensava em Walser com frequência. Gostava da ironia secreta do seu estilo e da sua premonitória intuição de que a estupidez avançaria implacável no mundo ocidental. Intrigava-me a grande originalidade das suas relações com o mundo da consciência. E tinha achado sempre infelizes mas muito belos os seus melancólicos passeios pelos arredores do manicómio de Herisau, onde, imitando o destino de Hölderlin, esteve internado durante vinte e três anos, até ao final dos seus dias. (…) Morreu no meio da neve, no dia de Natal, enquanto caminhava pelos arredores daquele sanatório mental. Dele se disse que é o mais secreto dos poetas, e seguramente isto aproxima-se da verdade, pois para Walser tudo se convertia por inteiro no exterior da natureza e o que lhe era próprio, mais íntimo, passou a vida inteira a recusá-lo. Recusava o essencial, o mais profundo: a sua angústia. Tal como ele mesmo dizia no seu romance Jakob von Gunten, disfarçava o seu desassossego «no mais fundo das trevas ínfimas e insignificantes».
Eu pensava em Walser com frequência, o discreto príncipe da secção angélica dos escritores. E há anos que já era o meu herói moral. Admirava nele a extrema repugnância que lhe provocava todo o tipo de poder e a sua prematura renúncia a toda a esperança de êxito, de grandeza. Admirava a sua estranha decisão de querer ser como toda a gente, quando na realidade não podia ser igual a ninguém, porque não desejava ser ninguém, e isso era algo que sem dúvida lhe dificultava ainda mais querer ser como toda a gente. Admirava e invejava aquela sua caligrafia que, no último período da sua actividade literária (quando se envolveu nesses textos de letra minúscula conhecidos como microgramas), se tinha tornado cada vez mais pequena e o tinha levado a substituir o traço da caneta pelo do lápis, porque sentia que ele se encontrava «mais perto do desaparecimento, do eclipse». Admirava e invejava o seu lento mas firme deslizamento para o silêncio. (…)
Quando me sentei no meu lugar no comboio, voltei a dizer para comigo que, se realmente aqueles dois romances espanhóis eram assim tão bons, dificilmente iria conseguir suportá-lo. Seria melhor não passar da leitura dos títulos. (…)
O mais curioso de tudo foi que, umas semanas depois de ter imaginado esta viagem a Sevilha, me convidaram realmente para ir a essa cidade para dialogar com Bernardo Atxaga sobre as relações entre realidade e ficção. Uma casualidade grande demais. Não pode ser, pensei num primeiro momento. Não, não pode ser. Mas podia ser sim, claro. Não era a primeira vez que a ficção aparecia na minha vida e, quase sem abrir a boca, pretendia configurar a realidade.
A voz do homem que telefonou e me convidou para ir a Sevilha tinha um timbre muito metálico. Num determinado momento da conversa, a voz desafinou-se um pouco quando disse: «em resumo, queremos que você e o senhor Atxaga nos falem de como a realidade dança com a ficção na fronteira.» (…) Decidi aceitar o convite, mas impondo a minha marca pessoal, só para que ele ficasse a saber quem estava do outro lado do telefone. «Está bem», disse-lhe, «aceito o convite. De qualquer forma, há muito tempo que desejava encontrar-me com o dottore Pasavento». Fez-se um silêncio. «Levarei o meu libré de mordomo», acrescentei, procurando dizer algo ainda mais esquisito, e nesse caso já completamente incoerente. «Não compreendo», disse então o que tinha telefonado. «Também eu não entendo isso do baile na fronteira», respondi-lhe.(…)
Mas era nítido que esses dois romances não existiam, pertenciam exclusivamente ao mundo da minha imaginação. Era a única coisa que impedia que a ficção e a realidade se encaixassem perfeitamente, o que, pensando bem, não deixava de ser um alívio, não era nada mau saber que os dois romances de Espanha tinham desaparecido com a mesma velocidade com que um dia os tinha imaginado. E, durante um momento, gozei com um louco conjecturando o desaparecimento dos dois geniais romances e não escritos precisamente por mim. Alguém os colocava no cume do Evarest, ao pé das toneladas de lixo, de desperdícios envenenados que ali há, e uma tempestade de neve apagava-os com um golpe certeiro.
O comboio de alta velocidade arrancou e, enquanto nos auriculares que a hospedeira me tinha dado ouvia música de flamengo bem alto, abri pausadamente o jornal e deparei com uma entrevista com o escritor argentino Alan Pauls, que no dia anterior tinha apresentado em Madrid o seu romance El pasado. Eu tinha assistido à conferência de imprensa que ele tinha dado e tinham-me chamado a atenção umas palavras suas à volta da lentidão da arte: «É uma experiência única, adormecer num filme de Tarkovski e acordar de repente com uma das suas imagens.» (…)
Ocorreu-me que podia contar que, não havia muito tempo, tinha imaginado que me encontrava em Sevilha com Atxaga e como, umas semanas depois, a ficção tinha acabado por tornar-se realidade. Mas enquanto pensava que tom escolheria para falar de tudo isto, de repente assaltou-me uma dúvida importante. Bernardo Atxaga iria a Sevilha? Há quatro anos que não o via, ele levava quatro anos de radical retiro quase monástico e, tendo em conta que se comentava que ultimamente o tinham esperado em lugares onde não tinha ido, não me parecia muito claro que ele acabasse por aparecer no encontro de Sevilha.(…)
Viajava longas horas de comboio, sempre expectante perante o acontecimento que o esperava, o reencontro com o amigo. Mas, quando chegava á casa, só encontrava uma criada que lhe preparava uma ceia enquanto esperava a chegada do proprietário da casa, que nunca chegava. Na manhã seguinte, a criada tinha desaparecido, o amigo não tinha chegado, e o protagonista iniciava, com um certo espanto e perplexidade, a viagem de regresso. Não se tinha passado nada ou talvez, sob a aparência de que não tinha ocorrido nada, tinha-se passado muito?
Disse para comigo que em Julien Gracq as narrações adoptam sempre a forma de um itinerário, eram percursos de carácter iniciático, animados constantemente pela busca do conhecimento e a espera do acontecimento. E também disse para comigo que se me acontecesse o mesmo que tinha acontecido ao viajante de Bray, quer dizer, se Atxaga não aparecesse, eu mesmo preencheria a meia hora dele para falar e dissertaria acerca de um tema que me obcecava desde há algum tempo. Porque mais do que Ausência, a palavra exacta, o tema sobre o qual podia falar se Atxaga faltasse, era o que mais me andava a perseguir nos últimos tempos, o tema do Desaparecimento.
Podia falar de Maurice Blanchot, por exemplo, tinham-lhe perguntado pela direcção que a literatura estava a tomar.
«Para onde vai a literatura?», tinham-lhe perguntado. «Dirige-se para si mesma, para a sua essência, que é o desaparecimento», tinha respondido imperturbável.
Se Atxaga não aparecesse ao encontro, dissertaria à volta do tema do Desaparecimento. Mas era preferível que ele aparecesse. Enquanto dizia isto para comigo e o comboio ia deixando para trás a cidade de Madrid, a minha mente foi-se desviando do caminho empreendido e vi-me a mim mesmo a caminhar por uma alameda do fim do mundo. Apercebi-me de que era o lugar ideal para escrever de verdade, tal como eu entendia que devia ser feito, mas também para nos despedirmos da literatura, que era outra forma de escrever de verdade: um lugar ideal para nos colocarmos diante do abismo e tentar ir mais além e, portanto, desaparecer. Mas para o desaparecimento era necessária uma certa coragem e que o medo – toda a vida pensei que o medo é o nosso único mestre – me ajudasse.
Vi-me a caminhar por aquela alameda, cujo nome parecia indicar-me que passeava próximo do mais além, e voltei a escutar a pergunta:
- Donde vem a tua paixão por desapareceres?
Entrei numa breve sonolência e quase palpei uma espécie de sentimento de bela infelicidade, um estado de ânimo a que eu aspirava. Até que de repente, abandonando aquelas sensações, olhei pela janela do comboio e, ao ver as terras secas e tristes de Castela, considerei uma experiência única ter regressado à realidade daquela maneira, tão de repente, com aquela súbita e feroz imagem de Castela que parecia surgida das profundidades de um filme de Tarkovski.
Quando, recuperado do choque que tinha tido com aquela imagem, regressei à minha anterior posição de explorador de abismos, além, no fim do mundo, pensei na tão solicitada figura literária da fugacidade das paisagens da janela do comboio. E também na própria literatura e que a sua característica mais notável consistia precisamente em escapar a toda a determinação essencial, a toda a afirmação que a estabilizasse, pois nunca a conseguiríamos fixar num ponto certo, era sempre necessário encontrá-la ou inventá-la de novo. Pensei nisto á medida que o comboio avançava com velocidade de ave rápida deixando para trás estações com nomes de terras impossíveis – Balagón foi a que anotei naquele momento -, apenas entrevistos. Retomei os auscultadores e vi que a música continuava a ser andaluza, mas tinha evoluído para a bossa nova, a rumba e o pop de Rosário Flores. Uma música que parecia, com exagerada antecipação, anunciar já Sevilha, embora a paisagem da janela e de filme de Tarkovski dizia a verdade e era sóbria e castelhana. Era como se a Andaluzia quisesse tornar-se presente ali, antes da hora, para logo a seguir desaparecer quando a atingisse. Recordo que olhei com tanta intensidade para a distância que até julguei presenciar o momento em que uma folha caía e, sem fazer qualquer espécie de ruído, tocava a linha do horizonte.
Aqui falam do livro de outra forma.
O excerto que fica veio daqui, da própria revista em papel mas cortei algumas (poucas) partes.
Passeávamos pela chamada alameda do fim do mundo, um melancólico trilho junto do castelo de Montaigne, quando me perguntaram:
- Donde vem essa tua paixão por desapareceres?
O meu acompanhante desejava saber donde vinha essa ideia de desaparecer que eu tanto anunciava em textos e entrevistas, mas que acabava por nunca pôr em prática.
(…)
- Francamente não sei – acabei por responder um pouco depois - , ignoro donde vem, mas suspeito que, paradoxalmente, toda essa paixão por desaparecer, todas essas tentativas, chamemos-lhe suicidas, são ao mesmo tempo tentativas de afirmação do meu eu.
Soaram muito pertinentes estas palavras ensaísticas, ditas ali, nem mais nem menos que no próprio berço do género literário do ensaio. Como se sabe, Michel de Montaigne escreveu os seus livros no cimo de uma torre anexa ao seu castelo próximo de Bordéus. Escreveu-os num estúdio e biblioteca que ficavam no terceiro andar da torre. Ali inventou o ensaio, esse género literário que, com o tempo, acabaria por se ligar à construção da subjectividade moderna, construção em que participaria o próprio Descartes, que também decidiu encerrar-se a pensar num lugar solitário, no seu caso, no bem aquecido quarto de um quartel de Inverno de Ulm. De maneira que pode dizer-se que o sujeito moderno não surgiu do contacto com o mundo, mas sim em quartos isolados onde os pensadores se encontravam sozinhos com as suas certezas e incertezas, sozinhos consigo mesmos.
Enquanto subia pela estreita e inclinada escada de caracol que conduzia ao estúdio e biblioteca de Montaigne, e às voltas com a resposta que tinha dado pouco antes ao meu acompanhante, pensei no mistério do desaparecimento dos homens. (…)
Olhei para o meu acompanhante e a imaginação fez-me vê-lo diferente de como o tinha visto até então. Quando olhei para ele com mais atenção, vi, ou julguei ver, que era Deus.
- Donde vem essa tua paixão por desapareceres? – voltou a perguntar-me.
Fortis imginatio generat casum, quer dizer, uma forte imaginação gerou o acontecimento, como diziam os clérigos no temo de Montaigne. O mesmo se pode dizer da minha visão de deus naquele preciso instante. Lá em cima no alto da torre, julguei descobrir que Deus repetia pelo menos duas vezes as perguntas. No mínimo, parecia-me um pouco tosco. Tinha esse Deus inteligência suficiente para, por exemplo, escrever ensaios? Olhei-o para voltar a responder-lhe e então vi que tinha deixado de ser Deus para voltar a ser a pessoa que me acompanhava. (…)
O meu acompanhante não era tão estúpido para insistir em perguntas já respondidas. Olhei para as traves do tecto, onde Montaigne tinha gravado pensamentos gregos e latinos que ainda hoje se conservam perfeitamente.
- Donde vem essa tua paixão por desapareceres? – ouvi voltarem a dizer-me.
O meu acompanhante não tinha dito aquilo. Estava de pé junto de uma das janelas, como se quisesse ver exactamente o mesmo que Montaigne via no seu tempo por aquela abertura. Estava imóvel. Não, não podia ter sido ele. Além disso, estava completamente ausente. Então, quem é que tinha dito aquilo? Era um eco? Era uma voz que procedia do interior de mim mesmo? Era o fantasma do berço do ensaio?
(…)
Umas semanas depois, sonhei que alguém a quem chamavam dottore Pasavento tinha desaparecido, no cimo da torre de Montaigne, perto de Bordéus, sem deixar rasto, nem uma única marca. O dottore era muito parecido com o escritor basco Bernardo Atxaga, um bom amigo desde há muitos anos. Pensei na quantidade de escritores que apareciam na minha vida, nos meus sonhos, nos meus textos. Embora a grande maioria deles costume ser gente vaidosa e mesquinha, há uma estranha secção minoritária de escritores que têm anjo e que são capazes de nos conduzir com assombrosa facilidade a outra realidade, a um mundo com uma linguagem distinta.
Quem disse que a palavra escritor cheirava a cachimbadas? Não, senhor. Quase todas as escritoras e escritores da secção com anjo são seres adoráveis que fumam e pensam frente a Olympias portáteis muito antigas, seres atormentados que parecem estar a viver num lugar à parte.
Costumam estar angustiados e serem muito inteligentes e, por não o estarem ou por não o serem, esfalfam-se por parecê-lo. Recordo muito especialmente um escritor da secção angélica que, num filme que se intitulava Num lugar à parte, vivia num hotel com uma grande janela que dava para um abismo e um mar numa cidade sem nome. E também me recordo que desde sempre desejei um dia ser como o protagonista daquele filme e viver num lugar que tivesse o mesmo duende daquele hotel que dava para o abismo. Quem disse que todos os grandes escritores decepcionavam quando se conheciam de perto? Não, senhor. Os da estranha secção angélica são encantadores e vivem em lugares sempre muito abismais.
De repente, imaginei que entrava num comboio na estação de Atocha de Madrid porque tinha combinado encontrar-me essa tarde com Bernardo Atxaga em Sevilha. No quiosque da estação comprava dois romances que estavam muito na berra. Um deles tinha esta epígrafe: «no final tudo perde o sentido, mas a máquina de escrever continua comigo.» Os dois romances eram espanhóis e dizia-se que eles estavam a mudar a história da literatura. Pareceu-me inclusive aterradora a possibilidade de que a Espanha pudesse voltar a intervir no curso da história. (…)
Acima de tudo e depois do longo tempo que tinha passado sem nos vermos, sentia uma grande vontade de o abraçar, de contar-lhe histórias dos últimos quatro anos, repetir e talvez melhorar gestos e risos de outros encontros anteriores.
Subi para o comboio com aqueles dois livros e interroguei-me se me ficaria bem confirmar que, com efeito, não se enganavam os que diziam que os dois romances acabavam de revolucionar a história da literatura. Um chamava-se Fantasia poética, e o outro, Um carro fúnebre errava por Paris. O título do primeiro, embora de gosto duvidoso, fez-me pensar imediatamente no escritor Robert Walser, que uma vez qualificou como «fantasia poética» o seu romance Jakob von Gunten, um dos meus livros preferidos. Eu pensava em Walser com frequência. Gostava da ironia secreta do seu estilo e da sua premonitória intuição de que a estupidez avançaria implacável no mundo ocidental. Intrigava-me a grande originalidade das suas relações com o mundo da consciência. E tinha achado sempre infelizes mas muito belos os seus melancólicos passeios pelos arredores do manicómio de Herisau, onde, imitando o destino de Hölderlin, esteve internado durante vinte e três anos, até ao final dos seus dias. (…) Morreu no meio da neve, no dia de Natal, enquanto caminhava pelos arredores daquele sanatório mental. Dele se disse que é o mais secreto dos poetas, e seguramente isto aproxima-se da verdade, pois para Walser tudo se convertia por inteiro no exterior da natureza e o que lhe era próprio, mais íntimo, passou a vida inteira a recusá-lo. Recusava o essencial, o mais profundo: a sua angústia. Tal como ele mesmo dizia no seu romance Jakob von Gunten, disfarçava o seu desassossego «no mais fundo das trevas ínfimas e insignificantes».
Eu pensava em Walser com frequência, o discreto príncipe da secção angélica dos escritores. E há anos que já era o meu herói moral. Admirava nele a extrema repugnância que lhe provocava todo o tipo de poder e a sua prematura renúncia a toda a esperança de êxito, de grandeza. Admirava a sua estranha decisão de querer ser como toda a gente, quando na realidade não podia ser igual a ninguém, porque não desejava ser ninguém, e isso era algo que sem dúvida lhe dificultava ainda mais querer ser como toda a gente. Admirava e invejava aquela sua caligrafia que, no último período da sua actividade literária (quando se envolveu nesses textos de letra minúscula conhecidos como microgramas), se tinha tornado cada vez mais pequena e o tinha levado a substituir o traço da caneta pelo do lápis, porque sentia que ele se encontrava «mais perto do desaparecimento, do eclipse». Admirava e invejava o seu lento mas firme deslizamento para o silêncio. (…)
Quando me sentei no meu lugar no comboio, voltei a dizer para comigo que, se realmente aqueles dois romances espanhóis eram assim tão bons, dificilmente iria conseguir suportá-lo. Seria melhor não passar da leitura dos títulos. (…)
O mais curioso de tudo foi que, umas semanas depois de ter imaginado esta viagem a Sevilha, me convidaram realmente para ir a essa cidade para dialogar com Bernardo Atxaga sobre as relações entre realidade e ficção. Uma casualidade grande demais. Não pode ser, pensei num primeiro momento. Não, não pode ser. Mas podia ser sim, claro. Não era a primeira vez que a ficção aparecia na minha vida e, quase sem abrir a boca, pretendia configurar a realidade.
A voz do homem que telefonou e me convidou para ir a Sevilha tinha um timbre muito metálico. Num determinado momento da conversa, a voz desafinou-se um pouco quando disse: «em resumo, queremos que você e o senhor Atxaga nos falem de como a realidade dança com a ficção na fronteira.» (…) Decidi aceitar o convite, mas impondo a minha marca pessoal, só para que ele ficasse a saber quem estava do outro lado do telefone. «Está bem», disse-lhe, «aceito o convite. De qualquer forma, há muito tempo que desejava encontrar-me com o dottore Pasavento». Fez-se um silêncio. «Levarei o meu libré de mordomo», acrescentei, procurando dizer algo ainda mais esquisito, e nesse caso já completamente incoerente. «Não compreendo», disse então o que tinha telefonado. «Também eu não entendo isso do baile na fronteira», respondi-lhe.(…)
Mas era nítido que esses dois romances não existiam, pertenciam exclusivamente ao mundo da minha imaginação. Era a única coisa que impedia que a ficção e a realidade se encaixassem perfeitamente, o que, pensando bem, não deixava de ser um alívio, não era nada mau saber que os dois romances de Espanha tinham desaparecido com a mesma velocidade com que um dia os tinha imaginado. E, durante um momento, gozei com um louco conjecturando o desaparecimento dos dois geniais romances e não escritos precisamente por mim. Alguém os colocava no cume do Evarest, ao pé das toneladas de lixo, de desperdícios envenenados que ali há, e uma tempestade de neve apagava-os com um golpe certeiro.
O comboio de alta velocidade arrancou e, enquanto nos auriculares que a hospedeira me tinha dado ouvia música de flamengo bem alto, abri pausadamente o jornal e deparei com uma entrevista com o escritor argentino Alan Pauls, que no dia anterior tinha apresentado em Madrid o seu romance El pasado. Eu tinha assistido à conferência de imprensa que ele tinha dado e tinham-me chamado a atenção umas palavras suas à volta da lentidão da arte: «É uma experiência única, adormecer num filme de Tarkovski e acordar de repente com uma das suas imagens.» (…)
Ocorreu-me que podia contar que, não havia muito tempo, tinha imaginado que me encontrava em Sevilha com Atxaga e como, umas semanas depois, a ficção tinha acabado por tornar-se realidade. Mas enquanto pensava que tom escolheria para falar de tudo isto, de repente assaltou-me uma dúvida importante. Bernardo Atxaga iria a Sevilha? Há quatro anos que não o via, ele levava quatro anos de radical retiro quase monástico e, tendo em conta que se comentava que ultimamente o tinham esperado em lugares onde não tinha ido, não me parecia muito claro que ele acabasse por aparecer no encontro de Sevilha.(…)
Viajava longas horas de comboio, sempre expectante perante o acontecimento que o esperava, o reencontro com o amigo. Mas, quando chegava á casa, só encontrava uma criada que lhe preparava uma ceia enquanto esperava a chegada do proprietário da casa, que nunca chegava. Na manhã seguinte, a criada tinha desaparecido, o amigo não tinha chegado, e o protagonista iniciava, com um certo espanto e perplexidade, a viagem de regresso. Não se tinha passado nada ou talvez, sob a aparência de que não tinha ocorrido nada, tinha-se passado muito?
Disse para comigo que em Julien Gracq as narrações adoptam sempre a forma de um itinerário, eram percursos de carácter iniciático, animados constantemente pela busca do conhecimento e a espera do acontecimento. E também disse para comigo que se me acontecesse o mesmo que tinha acontecido ao viajante de Bray, quer dizer, se Atxaga não aparecesse, eu mesmo preencheria a meia hora dele para falar e dissertaria acerca de um tema que me obcecava desde há algum tempo. Porque mais do que Ausência, a palavra exacta, o tema sobre o qual podia falar se Atxaga faltasse, era o que mais me andava a perseguir nos últimos tempos, o tema do Desaparecimento.
Podia falar de Maurice Blanchot, por exemplo, tinham-lhe perguntado pela direcção que a literatura estava a tomar.
«Para onde vai a literatura?», tinham-lhe perguntado. «Dirige-se para si mesma, para a sua essência, que é o desaparecimento», tinha respondido imperturbável.
Se Atxaga não aparecesse ao encontro, dissertaria à volta do tema do Desaparecimento. Mas era preferível que ele aparecesse. Enquanto dizia isto para comigo e o comboio ia deixando para trás a cidade de Madrid, a minha mente foi-se desviando do caminho empreendido e vi-me a mim mesmo a caminhar por uma alameda do fim do mundo. Apercebi-me de que era o lugar ideal para escrever de verdade, tal como eu entendia que devia ser feito, mas também para nos despedirmos da literatura, que era outra forma de escrever de verdade: um lugar ideal para nos colocarmos diante do abismo e tentar ir mais além e, portanto, desaparecer. Mas para o desaparecimento era necessária uma certa coragem e que o medo – toda a vida pensei que o medo é o nosso único mestre – me ajudasse.
Vi-me a caminhar por aquela alameda, cujo nome parecia indicar-me que passeava próximo do mais além, e voltei a escutar a pergunta:
- Donde vem a tua paixão por desapareceres?
Entrei numa breve sonolência e quase palpei uma espécie de sentimento de bela infelicidade, um estado de ânimo a que eu aspirava. Até que de repente, abandonando aquelas sensações, olhei pela janela do comboio e, ao ver as terras secas e tristes de Castela, considerei uma experiência única ter regressado à realidade daquela maneira, tão de repente, com aquela súbita e feroz imagem de Castela que parecia surgida das profundidades de um filme de Tarkovski.
Quando, recuperado do choque que tinha tido com aquela imagem, regressei à minha anterior posição de explorador de abismos, além, no fim do mundo, pensei na tão solicitada figura literária da fugacidade das paisagens da janela do comboio. E também na própria literatura e que a sua característica mais notável consistia precisamente em escapar a toda a determinação essencial, a toda a afirmação que a estabilizasse, pois nunca a conseguiríamos fixar num ponto certo, era sempre necessário encontrá-la ou inventá-la de novo. Pensei nisto á medida que o comboio avançava com velocidade de ave rápida deixando para trás estações com nomes de terras impossíveis – Balagón foi a que anotei naquele momento -, apenas entrevistos. Retomei os auscultadores e vi que a música continuava a ser andaluza, mas tinha evoluído para a bossa nova, a rumba e o pop de Rosário Flores. Uma música que parecia, com exagerada antecipação, anunciar já Sevilha, embora a paisagem da janela e de filme de Tarkovski dizia a verdade e era sóbria e castelhana. Era como se a Andaluzia quisesse tornar-se presente ali, antes da hora, para logo a seguir desaparecer quando a atingisse. Recordo que olhei com tanta intensidade para a distância que até julguei presenciar o momento em que uma folha caía e, sem fazer qualquer espécie de ruído, tocava a linha do horizonte.
Aqui falam do livro de outra forma.
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